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Que ciência há no queijo do Pico, numa azeitona ou no chícharo?

Se algum dia perdermos o queijo do Pico, teremos uma detalhada caracterização da sua biodiversidade bacteriana que, se quisermos, o fará renascer. O mesmo serve para a broa de Avintes, alheira, queijo da Serra e outros produtos tradicionais portugueses. Se dúvidas houver sobre a possibilidade de ressuscitar um produto, olhe-se para o que os investigadores estão a fazer com o chícharo em Alvaiázere. E a azeitona em salmoura? Sete azeitonas por dia nem sabe o bem que lhe faziam. Estes são apenas alguns projetos que os cientistas “cozinham” nos laboratórios.

Em vez de aventais na cozinha, temos batas no laboratório. Em vez de colheres de pau e tachos, há pipetas, tubos de ensaio e sofisticadas máquinas de análise bioquímica e molecular. Há vários grupos de investigadores em diferentes institutos portugueses a examinar produtos tradicionais portugueses. Os trabalhos vão da “simples” caracterização bioquímica e molecular até à preparação de alimentos funcionais, bioativos e probióticos, passando ainda por projetos que “ressuscitam” ingredientes velhos e extintos da nossa cozinha tradicional.

A imposição de regras “cegas” de diretivas comunitárias já fez desaparecer muitos produtos locais que não cumpriam as normas únicas para uma Europa tão diferente. Exemplos? “Muitas famílias de enchidos e queijos de micro-regiões já desapareceram”, responde André Magalhães, jornalista, cozinheiro e professor de Gastronomia Portuguesa no mestrado de Ciências Gastronómicas da Universidade Nova de Lisboa. “Em muitas situações, apagou-se a memória. Ao obrigar a senhora que fazia o queijo num alpendre, com uma janela de rede para não entrarem as moscas, a pôr uma janela de alumínio, a climatizar e a esterilizar, inibiu-se a flora autóctone do queijo dela que potenciava as suas virtudes”, diz. Assim, argumenta, para sabermos o que temos e para o conseguirmos preservar, a “intromissão” da ciência nestes assuntos é mais do que bem-vinda. É necessária.

Queijo do Pico com BI

Xavier Malcata, professor no Departamento de Engenharia Química da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e investigador no LEPABE (Laboratório de Engenharia de Processos, Ambiente, Biotecnologia e Energia), é autor de vários estudos sobre diferentes produtos tradicionais portugueses. “O que queremos é saber mais sobre estes produtos, não no sentido de os melhorar, porque eles já são muito bons. A questão aqui é tentar que eles sejam completamente seguros. E que tenhamos informação disponível para que, face a qualquer problema que possa eventualmente surgir, haja dados e conhecimento que podem ajudar a resolver”, diz.

Com quatro investigadoras do Instituto de Investigação em Tecnologias Agrárias e do Ambiente da Universidade dos Açores, por exemplo, Xavier Malcata estudou o queijo do Pico, um produto artesanal feito com leite de vaca cru que resiste em poucas (cada vez menos) queijarias da ilha. “Contam-se pelos dedos de uma mão”, lamenta o investigador ao P2.

Em nome da preservação deste produto único, os investigadores fizeram a sua caracterização físico-química completa. Os estudos identificaram as comunidades microbianas que prevalecem no fabrico e maturação (21 dias) deste queijo. Demonstraram ainda que os riscos associados aos principais agentes patogénicos de transmissão alimentar (Listeria monocytogenes ou Salmonella, entre outros) são “muito baixos ou até inexistentes” e concluíram que os microrganismos autóctones do queijo do Pico possuem “potencial probiótico”. Xavier Malcata esclarece que o “bilhete de identidade” do queijo do Pico quer contribuir para a melhoria do produto — sem mudar nada no sabor — e também garantir que a “receita” não se perderá nunca. Se algum dia, por algum motivo, se deixar de fazer este queijo, sabemos como fazê-lo, passo por passo, microrganismo por microrganismo. Só tem é que ser (re) feito lá, na ilha, porque há coisas como os microrganismos autóctones que não se imitam.

Esta caracterização pormenorizada de um produto está longe de ser um caso único. Xavier Malcata, lembra, já o fez para o queijo de São Jorge ou para a pera-rocha. Ou até para a broa de Avintes, num estudo feito com o investigador João Rocha, no âmbito do seu doutoramento.

Uma broa parece algo simples, misturar farinhas com água e levar ao forno. Porém, o seu perfil microbiológico, publicado em 2011 na revista Food Microbiology, tem várias páginas. Estudou-se a microflora e também as substâncias que vão surgindo na broa com a fermentação e as que lá ficam, antes da cozedura. “Os perfis são muito complexos para o comum dos mortais, mas, dito de forma simples, existe aqui uma panóplia de elementos de famílias de lípidos (e não só) muito interessantes para a saúde”, diz o investigador. Uma das características especiais desta broa escura, que casa como nenhuma com um caldo verde, é o universo de microrganismos (microbiota) que existe no que se chama “massa mãe” ou “isco” — de cada vez que se faz uma massa, reserva-se um bocado para a coinfecção seguinte e assim sucessivamente. O que existe na massa mãe é único e os investigadores identificaram tudo o que ali está.

Há mais exemplos. Há já uma década que a Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto estuda o queijo Serra da Estrela e o requeijão Serra da Estrela, do ponto de vista microbiológico, físico-químico, bioquímico e sensorial. A análise — que envolve outros parceiros, nomeadamente a Universidade de Aveiro — permitiu elaborar novas estratégias de preservação e armazenamento do produto (que mantém as suas qualidades) e também identificar alguns trunfos nutricionais, designadamente uma maior riqueza em ácido linoleico, destes produtos com “denominação de origem protegida”.

Alheira, frutos e hortaliças

Queijos e broa com caldo verde já quase fazem uma refeição, acompanhados de um bom vinho. Mas há mais. Outras das investigações da Escola Superior de Biotecnologia do Porto é sobre a alheira. Além da caracterização deste produto, os cientistas estão a trabalhar no isolamento de bactérias de produtos tradicionais fermentados, que têm atividade contra bactérias patogénicas, em particular a Listeria monocytogenes. “O objetivo é controlar agentes patogénicos em produtos tradicionais com ‘recursos’ biológicos autóctones”, refere um comunicado sobre o estudo.

E a caracterização de produtos tradicionais vai além do que é cozinhado. Maria da Graça Dias e Luísa Oliveira, duas investigadoras do Departamento de Alimentação e Nutrição do Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge (INSA), apresentaram em 2015 um estudo sobre os frutos e produtos hortícolas tradicionais portugueses. Aqui reúne-se informação sobre o teor em carotenoides (um grupo de pigmentos naturais reconhecidos como compostos bioativos benéficos para a saúde) em várias qualidades de maçã, cereja, laranja, pêssego e pera, bem como em folhas de beterraba, acelgas, couve-galega, beldroegas, couve tronchuda, nabiças e tomate.

Os investigadores do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) — António Xavier, da Universidade Nova de Lisboa –, também trabalham com produtos tradicionais portugueses. Neste momento estão envolvidos num projeto para fazer renascer o chícharo. E querem que esta leguminosa de elevador valor nutricional surja na melhor forma possível. Para quem não sabe — até porque o cultivo de chícharo caiu em desuso e o produto já quase desapareceu —, o chícharo será algo entre o tremoço e o grão-de-bico. Em Alvaiázere estão a ser cultivadas 150 variedades de chícharo. As suas características nutricionais serão estudadas, ao mesmo tempo que se faz o perfil genético e proteico. O projeto, coordenado pela investigadora Carlota Vaz Patto, que junta cientistas, empresas e o município de Alavaiázere (no distrito de Leiria), quer encontrar o chícharo perfeito até 2019.

Soro bioativo e azeitona probiótica

 

O fruto da oliveira e origem do azeite, um dos principais ingredientes da dieta mediterrânica, também foi estudado. Desta vez, as descobertas sobre a azeitona de mesa em salmoura já levaram os cientistas a testes com ratinhos que pretendem comprovar o potencial deste produto para a saúde humana.

Sabe-se que tem um grande valor nutritivo, aminoácidos, fibras, baixo teor de proteínas, ácidos gordos insaturados, é enriquecida com antioxidantes naturais e vitaminas. Mas não é só. “Constitui, para além do mais, um promissor reservatório de bactérias lácticas com potencial probiótico que, pela sua origem vegetal, se torna um bom candidato a alimento probiótico que não coloca as questões de segurança levantadas para as estirpes de origem intestinal humana ou láctica”, resume Xavier Malcata, que participa no projeto com investigadores do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, do Instituto Superior de Agronomia, da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e do ITQB.

Probiótico é, como a palavra denuncia, um organismo vivo que age a favor da vida. “São microrganismos que conseguem, por exemplo, evitar que agentes patogénicos se desenvolvam ou conseguem segregar substâncias que nos ajudam a lutar contra infeções”, diz. E, olhando para as prateleiras dos supermercados, estes produtos (sobretudo na versão láctea) são cada vez mais populares.

Xavier Malcata explica que, para que os probióticos representem um benefício na saúde, é necessário ingerir milhares de milhões de “unidades formadoras de colónias” por dia e durante vários dias. Traduzindo essa quantidade para azeitonas de mesa, isso significará algo como sete azeitonas por dia, esclarece. “A composição particular da polpa da azeitona em compostos fenólicos, principalmente a oleuropeína e o hidroxitirosol, faz dela uma matriz especial; são consideradas moléculas com efeito antioxidante, apresentando-se como agentes de eleição na prevenção de doença crónica, doença cardiovascular e cancro e também porque incrementam o potencial probiótico das bactérias”, explica em resumo.

Sem sair do mesmo corredor do supermercado, encontramos (ao lado dos probióticos) os populares alimentos bioativos. Também há estudos sobre isso. Desta vez, os investigadores estudaram o método tradicional português de fazer queijo (outra vez o queijo) que usa soro de leite e a enzima do cardo para coalhar o leite. O soro de leite que sobra do fabrico do queijo é um excedente que muitas vezes acaba por ser despejado nos campos ou linhas de água. Xavier Malcata e Tânia Tavares, investigadora na FEUP, usaram este “desperdício” de soro de leite para “cozinhar” um produto de valor acrescentado (os chamados “alimentos funcionais”). Da mistura do soro de leite com o cardo nasceram umas minúsculas proteínas (chamadas “péptidos”) que podem ser misturadas (microencapsuladas) em bebidas e
que, segundo testes realizados em ratinhos, têm um efeito protetor da hipertensão arterial, bem como propriedades antiulcerogénicas e anti-inflamatórias. O produto que pode fazer parte de um alimento funcional já está patenteado.

 A propósito de alimentos que protegem o estômago, uma equipa de investigadores da Universidade de Coimbra também comprovou que toda a dieta mediterrânica com os seus vegetais verdes e o vinho, entre outros ingredientes, desencadeia uma série de reações químicas que são benéficas, evitando o desenvolvimento de úlceras.

A verdade é que algumas das conclusões dos cientistas apenas parecem confirmar o que muitas avós dizem há muito tempo. “Temos um cofre cheio com um tesouro, mas não sabemos bem o que está lá dentro. E aí a ciência é muito importante. É preciso saber o que temos e cruzar esse conhecimento com o que sabem as velhinhas com as suas mezinhas”, defende André Magalhães. Enquanto esperamos por mais ciência, será melhor manter os produtos tradicionais portugueses no prato. Pela nossa saúde. Ou, como um dia terá dito Hipócrates: “Que a comida seja teu alimento e o alimento tua medicina.”

Fonte: Jornal Público
07-03-2017
Revisão: Dr.ª Ana Freitas